“Zona” portuária
Terminal graneleiro da Cargill em Santarém. ©Daniel Beltra/Greenpeace
“A harmonia aqui era bem maior”, diz Raimundo de Lima Mesquita, lembrando de sua vida em Santarém, oeste do Pará, dez anos antes. Presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do município (STTR), Peba, como é conhecido, viveu na pele as mudanças no campo: companheiros de roçado deixaram suas terras, igarapés secaram e foram envenenados, a grilagem correu solta e a produção caiu. “A Cargill chegou de forma desordenada, arbitrária, como se aqui fosse terra de ninguém”.
A ferida aberta nos arredores de Santarém com a chegada da Cargill, gigante do setor agroindustrial, ainda não estancou. Era ano 2000 quando a multinacional anunciou que construiria um terminal de grãos no Porto de Santarém. Num processo atropelado, três anos depois o terminal estava de pé, cheio de irregularidades e sem que o Estudo de Impactos Ambientais (EIA) fosse feito. O documento, que prevê a viabilidade socioambiental do projeto, é regra legal básica para que um empreendimento desse porte saia do papel.
“Esse terminal é um absurdo jurídico. É a primeira vez no Brasil que um EIA é produzido depois da obra pronta”, critica o procurador federal Felício Pontes Jr., do Ministério Público do Pará. “Ele não poderia estar operando”. Depois de um emaranhado de recursos e liminares, em 2007 a Justiça obrigou a Cargill a produzir o documento. Ele está pronto, e será discutido em audiência pública no próximo dia 14, quarta-feira.
Mas segundo uma análise técnica feita pelo MP em cima do estudo, o problema está longe de ser resolvido: “O EIA não aborda as verdadeiras soluções e, principalmente, não aborda com profundidade as mitigações que devem diminuir os impactos locais do projeto”, pontua Felício.
Os impactos, aliás, não são poucos. Com capacidade para 60 mil toneladas de grãos, o terminal trouxe para a região uma verdadeira corrida por território para o plantio de soja. “Terra virou uma mercadoria caríssima. Os sojicultores chegavam, ofereciam dinheiro e compravam nossas terras”, recorda Peba, para completar: “Os conflitos fundiários vieram junto. Teve grilagem, intimidações, ameaças de morte, redução da população nas comunidades e até a extinção de algumas delas”.
A percepção de Peba não está errada. Dados da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Finanças (Sepof) mostram que, entre 2000 e 2007, enquanto a população urbana de Santarém cresceu 30%, a rural caiu em mais de 58%, aumentando a concentração de terras e inchando a periferia da cidade.
A produção local também mudou, com a monocultura varrendo o município. Arroz, feijão, milho e outras culturas cultivadas por agricultores familiares deram lugar à soja. Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), na safra de 1998/1999, o grão não ocupava mais que 1,6 mil hectare no estado. Foi o terminal ficar pronto e a safra 2003/2004 já tomava mais de 35 mil hectares. “Produzíamos bem. Agora, onde colhíamos 50 sacos de arroz, colhemos oito, cinco. Não dá para competir com quem trabalha com tecnologia”, afirma o presidente do STTR.
Vem mais por aí
Com o terminal da Cargill em operação e a expansão da soja pela região, o desmatamento subiu junto. As derrubadas só tiveram freio a partir de 2006, e um dos fatores que contribuiu para isso foi a Moratória da Soja. O compromisso foi assumido pela Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove) e Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), além de suas associadas, dentre elas a Cargill. Segundo o acordo, nenhuma soja plantada em área desmatada depois dessa data poderia ser comercializada.
Apesar de a devastação ter diminuído, os impactos a que Peba se refere continuam sem soluções. E podem ser até mesmo agravados, caso os erros do passado se repitam. Enquanto os pequenos agricultores ainda buscam se recuperar do baque da soja, a Cargill já anuncia seu plano de expandir o terminal com outro armazém de 30 mil toneladas de capacidade. O maior produtor de soja do Brasil, Eraí Maggi Scheffer, também já anunciou que em 2011 abre um novo terminal de grãos no Porto de Santarém, com a promessa de escoar três milhões de toneladas por ano.
Portanto, a hora é de alerta. “O terminal da Cargill é um marco da expansão do agronegócio na Amazônia, e mostra como a falta de mecanismos de governança pode ter impactos que, ao contrário dos lucros, não são absorvidos pelos empreendedores, mas por toda a sociedade”, diz Raquel Carvalho, da Campanha da Amazônia do Greenpeace.
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