sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

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04/01/2008 - 08h15
Freegans reviram lixo em busca de modo de vida alternativo ao capitalismo

Gabriela Sylos
Em São Paulo

Tarde de dezembro em Santo André (SP). Clientes que deixaram para fazer a feira na última hora apertam o passo. Donas de casa pedem desconto porque as frutas já estão levemente amassadas. Feirantes resistem, tentam manter o lucro. Em meio a montanhas de alface e legumes no chão, algo destoa do cenário típico de fim de feira: revirando os restos descartados pelos comerciantes estão jovens que poderiam pagar pelos alimentos. Mas não querem.

Com o saldo da coleta é que será feito o almoço "freegan", promovido pelos integrantes de um grupo de Santo André, região metropolitana de São Paulo. Os freegans são pessoas que buscam estratégias para viver o máximo possível à margem da economia. Isso inclui consumir o mínimo possível de produtos industrializados na tentativa de burlar o sistema capitalista, que eles consideram maléfico à sociedade.

ALMOÇO FREEGAN EM SANTO ANDRÉ
Gabriela
Legumes desperdiçados em uma feira formam "montanha" na calçada
Gabriela Sylos/UOL
Restos da feira são aproveitados para fazer saladas, prato principal e sobremesa
Gabriela Sylos/UOL
No jardim da casa, as ervas daninhas são preservadas e usadas no dia a dia do grupo
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O termo freegan origina-se da contração das palavras "free" (livre em inglês) e "vegan" -vegetarianos que além de abolir o consumo de carne e tudo o que vier de animais, também não utilizam produtos que tenham sido testados nos mesmos. A idéia do freeganismo é ultrapassar essa ideologia e adotar estratégias alternativas de sobrevivência e convivência.

O reaproveitamento de alimentos desperdiçados é apenas uma das facetas do movimento -do lixo também podem ser retirados roupas e utensílios domésticos. Outros princípios são: cultivar jardins e hortas coletivas para prover o próprio sustento, abusar do que eles chamam de "transporte ecológico" (caminhadas, bicicleta, skate ou caronas em automóveis), e algumas medidas mais radicais como a moradia livre de aluguel e o desemprego voluntário. A cartilha freegan justifica que a moradia é um direito e não um privilégio (eles sugerem que imóveis abandonados sejam ocupados), enquanto trabalhar significa sacrificar a própria liberdade para obedecer ordens de terceiros. Além disso, trabalho é sinônimo de colaboração com o sistema capitalista.

E, afinal, em tese, com a adoção total das medidas propostas, não haveria mais necessidade de depender do dinheiro proveniente do trabalho.

O termo freegan surgiu na década de 90 e floresceu principalmente em países como Estados Unidos, Austrália e Inglaterra, onde os desperdícios são substanciosos. Nos EUA, algumas pessoas já se organizam para percorrer roteiros com lixeiras "rentáveis". Um exemplo é Madeline Nelson, 51, que largou o trabalho para se dedicar a projetos sociais e ao freeganismo e hoje busca a subsistência pelas lixeiras de Nova York. Em entrevista ao "The New York Times" em junho, Madeline disse que "a maioria das pessoas trabalha mais de 40 horas por semana em empregos que elas não gostam para comprar coisas que elas não precisam".

Em Santo André, as pessoas que aplicam princípios do freeganismo em seu dia a dia há cerca de dois anos dificilmente denominam-se como tais. "Não gostamos de rótulos. Eu não sou uma coisa ou outra, sou uma junção de coisas que eu gosto. Daqui um tempo posso largar tudo e mudar", afirma Ellen, 21, que prefere se identificar apenas com o primeiro nome, assim como os outros membros do grupo de Santo André.

A jovem, que ganha dinheiro vendendo livros e camisetas, é vegan e foi uma das pessoas que teve a idéia de oficializar a refeição freegan que acontecia esporadicamente na grande casa mantida pelo grupo. Agora o almoço acontece todas as sextas-feiras. Os produtos são recolhidos na feira que acontece no mesmo dia na rua ao lado.

Interessam a eles aquelas frutas e legumes que para os feirantes e clientes regulares não prestam mais: um tomate um pouco amassado, a banana que soltou do cacho ou a folha de couve desperdiçada em uma montanha de folhas acumuladas atrás de uma barraca. Mas também não precisa ser qualquer folha. "Melhor pegar a mais verde, que tem mais cálcio e pode ajudar na minha dor de dente", ressalta Ellen durante a coleta. Sua mãe tinha uma quitanda e ela lembra-se de ter visto muita coisa boa ser desperdiçada porque estava apenas visualmente danificada. Ellen ainda mora com a família, mas diz que leva uma vida nômade, entre a sede do grupo e a casa de amigos.

Ritual coletivo
Os feirantes têm reações diversas a estes jovens que se misturam às pessoas que buscam comida por dificuldade financeira. "Alguns indicam onde podemos pegar, outros mal respondem", conta Natália, 22, que durante a incursão pedia licença para procurar alimentos entre as sobras. Publicitária formada, ela trabalha com teatro e cinema.

O grupo busca os produtos coletivamente e compartilha os princípios freeganistas, mas algumas diferenças são evidentes. Enquanto Ellen e Natália não comem carne, outros integrantes não seguem o cardápio vegetariano; Natália já terminou o curso superior, mas outros nem pensam em fazer faculdade. Se Guilherme sonha em montar sua comunidade libertária e sair de casa, nem todos do grupo são adeptos da idéia.

Mas as diferenças pouco importam na hora do almoço. Na cozinha, nada de um corta, o outro refoga. Todos fazem tudo ao mesmo tempo. "Para a gente é um ritual", conta Ellen. "Se tivesse menos gente na cozinha ou uma divisão de tarefas, certamente o almoço sairia mais cedo. Mas isso não importa para nós".

Da coleta ao prato sujo na pia, passam-se mais de três horas. E o trabalho não se restringe a descobrir a melhor combinação entre os legumes: durante o preparo, por exemplo, a água terminou e o grupo teve de checar o registro, além de colocar uma escada dentro da cozinha para verificar a caixa d'água.

O exemplo vem de dentro
As atitudes freegans espalham-se pela casa. Além do tradicional almoço, o grupo já organizou "rolês freegans", passeios aos finais de semana que buscam objetos jogados fora, principalmente em caçambas. "Tem uma privada verde linda que foi jogada fora aqui perto", diz Ellen, que sempre gostou de dar uma "espiada" nas caçambas. O grupo tem planos de construir, no quintal da casa, um galpão feito com material encontrado nas ruas. O local é necessário para abrigar e ampliar o que eles chamam de "baú de dádivas" -caixas que ficam na entrada da casa e recebem objetos doados. Quem quiser dá, quem quiser pega.

"Essa casa é uma auto-gestão, um modelo de solidariedade que tentamos transmitir para fora", conta Marina, 16. Os móveis foram doados, a biblioteca com livros e vídeos foi montada aos poucos, o lixo obviamente é reciclado e os restos orgânicos vão para a composteira. Na horta são cultivados temperos e árvores frutíferas que crescem misturados às ervas daninhas, utilizadas ora para curar ferimentos, ora para reforçar a comida.

Ellen considera-se uma estudiosa do assunto. Diz que aprende a cada dia uma nova utilidade para as ervas daninhas. "Por mais que tentemos não consumir, vivemos como parasitas do sistema, aproveitando aquilo que é desperdiçado", diz, "acho que o futuro está em sobreviver com as coisas que a natureza nos dá".

Viver sem os produtos industrializados é mesmo difícil. Ao lado da salada e dos legumes refogados -fruto do desperdício-, estão o óleo de cozinha e o suco de caixinha comprados no mercado.

"A gente sente a pressão. Essa roupa que eu estou usando foi comprada; para chegar aqui eu peguei o trem; os meus pais me cobram que eu faça uma faculdade", assume Ellen, lembrando que o grupo tem que pagar o aluguel da casa e vender cerveja para fechar as contas no final do mês. "Mas eu pretendo continuar estudando as plantas e andar mais de bicicleta", finaliza a jovem.

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